09/06/2016

Pode ir desembaraçando?






Quem tem cabelo crespo sabe, ele é tão especial que precisamos buscar salões específicos, e caros,  para cuidar deles.


Visitei um desses pela segunda vez para cortar os meus. Desde a primeira visita achei estranho o método de pentear antes de cortar. Mas o corte ficou bom, então voltei.


Cheguei 20 minutos antes e, no meu horário a cabeleireira tinha duas pessoas para atender ao mesmo tempo. Saquei que a rotina lá é puxada, não é ela quem cuida da agenda, então sentei para esperar mais um pouco.


Para adiantar, a cabeleireira me entregou um pente e me disse: Você pode ir desembaraçando, por favor?

Eu que tinha lavado, hidratado e perfumado meus cabelos pela manhã, fiquei uns segundos com o pente na mão sem saber direito o que fazer com ele.


Eu já tinha entendido o método, a pressa da cabeleireira, que aliás é boa, e branca. Branca como a dona do salão, cheio de assistentes negras que puxam assunto enquanto a gente espera, escolhem a música, pintam, lavam e finalizam, mas não cortam.


Enquanto eu tentava entender porque meu cabelo estaria embaraçado, já que ele é sim, crespo, e seus cachos secos não se dão com pente nenhum, do jeito que eu quero e gosto, olhei para a colorista, que fazia mechas em uma cliente ao meu lado, e recebi de volta um olhar de cumplicidade, e uma piada boa:
- Esse mundo tá perdido, até a cliente tem que trabalhar.


Nesse ponto eu já tinha tirado meus grampos e estava quase, mas quase mesmo, tentando descobrir como funcionava aquele pente.


Não seria minha pior situação em um salão. Outra vez, em outro lugar, o cabeleireiro disse que esse tipo de cabelo só conseguia cortar se escovasse antes. Eu que nunca tinha cortado o cabelo depois de parar de alisar topei, achei que era assim. Até ele ficar profundamente transtornado quando, ao fim do procedimento, eu pedi para lavar e tirar a escova. Como assim? Tá tão bonito! Lavei, me esqueci desse endereço e fiquei anos com o cabelo todo torto porque eu mesma passei a cortar.


Mas dessa vez foi diferente, a colorista não podia repreender a colega de trabalho, mas me deu coragem para largar aquele pente no balcão e decidir que não iria desembaraçar cabelo nenhum.


Enquanto esperava eu desejei ser uma pessoa extrovertida, ter feito uma piada em voz alta dizendo que meu cabelo não é embaraçado, é cacheado.

Pensei muita coisa, até neste texto que estou escrevendo agora e em tantos outros que leio todo o santo dia, relatando olhares, frases, ações racistas que alguns bons amigos brancos teimam em dizer que é distração, falta de informação, coisa simples que as vezes a gente passa.


Eu mesma não sou muito afeita a compartilhar esse tipo de história, primeiro porque custa tempo escrever tanto, depois porque fico sempre pensando que é dar moral pra eles, sabe? Ficar falando deles o tempo todo enquanto a gente tem tanta coisa boa pra dizer de nós?


É por isso que este texto não é sobre racismo. Não vou dizer o nome da pessoa que me atendeu assim nem fazer campanha de boicote ao salão.


Este é um texto sobre cumplicidade. Escrevi tudo isso para dizer que todas as mulheres negras que compartilham comigo suas historias tristes e alegres, olhares cúmplices pela rua, suas piadas, me fortalecem. Me fazem gostar de mim, mesmo quanto o mundo todo teima em repetir que meu jeito está fora do lugar.

A todas vocês, minha gratidão.

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